Se os oceanos eram silenciosos, Jacques Cousteau agitou-os. Mergulhador, inventor, explorador, realizador e, entre outras ocupações, um divulgador dos oceanos que lhes deu voz através das suas expedições, dos livros que escreveu e dos filmes e séries que fez. O inconfundível Jacques Cousteau de gorro vermelho, camisola de gola alta e óculos de aros finos já está nas salas de cinema portuguesas em A Odisseia, um filme com algumas das suas aventuras.
A 11 de Junho de 1910 nascia Jacques-Yves Cousteau em Saint-André-de-Cubzac, no Sudoeste da França. Desde muito cedo que teve um interesse pela água e por objectos mecânicos. “Quando tinha quatro ou cinco anos, adorava tocar a água. Fisicamente, sensualmente”, disse uma vez em entrevista. Jacques Cousteau terá começado a mergulhar aos dez anos nas águas frias de um lago nos Estados Unidos e aos 13 anos comprou a sua primeira câmara de filmar.
Todos estes ingredientes viriam a ser essenciais nas suas futuras expedições. Mas antes ainda ingressou na Academia Naval, estudou na Escola de Aviação Naval e fez parte da Marinha francesa. Em 1937, casou com Simone Melchior com quem teve dois filhos, Jean-Michel e Philippe Cousteau.
Aliás, é com os seus filhos a observar o céu estrelado ou a mergulhar que começa o filme realizado pelo francês Jérôme Salle e com Lambert Wilson a encarnar Jacques Cousteau. Mas voltemos ainda às suas invenções. Foi durante a II Guerra Mundial que viria a reinventar o escafandro autónomo. “O primeiro Verão passado no mar com o Aqualung, o escafandro autónomo, foi um tempo memorável. Estávamos em 1943, em plena guerra, e o meu país estava ocupado”, escreveu Jacques Cousteau no livro O Mundo do Silêncio, de 1953, e que depois deu um filme.
Cousteau com a sua mulher Simone Melchior e os seus filhos Jean-Michel e Philippe Cousteau DR
Nos anos 30, mergulhar não era como hoje. Para se estar debaixo de água durante muito tempo, os mergulhadores precisavam de vestir fatos enormes e pesados para fazer frente à pressão e dependiam do ar fornecido por um tubo ligado a uma bomba de um barco à superfície. Se fosse perto da superfície, havia quem mergulhasse mesmo sem escafandro: com uma máscara, óculos, barbatanas e um tubo. Cousteau ainda experimentou vários aparelhos respiratórios autónomos com base em circuitos fechados de ar comprimido contido em garrafas, mas sem êxito.
Foi quando conheceu Émile Gagnan, engenheiro na empresa francesa Air Liquide, que tudo mudou. Gagnan disse-lhe que o principal problema era fazer com que a pressão do ar nas garrafas fosse sempre igual à pressão da água. Criou-se então um regulador do escafandro, uma peça que debita o ar à pressão do ambiente. A inspiração foi um regulador de pressão que era usado nos motores dos automóveis a gás. “Quando mergulhamos, sentimo-nos como se fôssemos anjos. Libertamo-nos do nosso peso”, disse numa entrevista já depois da invenção. No filme A Odisseia, vêem-se já os mergulhadores a nadar como peixes.
Um dos protagonistas do filme é o famoso Calypso. Tinha sido um draga-minas da Grã-Bretanha durante a II Guerra Mundial, transformado depois em ferry. Cousteau veio a descobri-lo em Malta e foi o eleito para as suas expedições. O milionário Loel Guinness comprou-o e, depois, alugou-o por um valor simbólico a Cousteau. Logo em 1952 foi para o mar Vermelho, onde se fizeram as primeiras filmagens a cores a uma profundidade de 50 metros.
Esta foi também a casa onde se fez uma expedição ao mar Mediterrâneo, Golfo Pérsico, mar Vermelho e ao oceano Índico. Daí resultou o filme O Mundo do Silêncio, de 1956, que recebeu uma Palma de Ouro de Cannes. No cinema, Jacques Cousteau ainda venceu o Óscar de melhor curta-metragem por Peixe Vermelho, de 1959; ou de melhor documentário por Mundo sem Sol, de 1964. Na televisão ficou conhecido com séries como A Odisseia de Jacques Cousteau.
O Calypso passou também por Portugal. No final dos anos 60, a embarcação esteve nos Açores e foi aí que Margarida Farrajota, agora com 67 anos, conheceu o comandante Cousteau. A actual presidente do Centro Português de Actividades Subaquáticas começou a mergulhar cedo, tal como Jacques Cousteau, logo aos 11 anos. Já conhecia o trabalho de Cousteau através do filme O Mundo do Silêncio e dos meios de comunicação social. Margarida Farrajota recorda que Cousteau dizia que as águas dos Açores “eram infinitamente transparentes.”
Se no filme o Calypso se mostra imponente pelos oceanos e chega à Croácia, África do Sul, Baamas, ou até mesmo à Antárctida, a verdade é que em 1996 as suas aventuras mudaram de rumo. Foi abalroado por uma barcaça no Porto de Singapura e acabou por se afundar. O navio foi rebocado, apenas em 2007, para o Porto de Concarneau, em França, para ser restaurado nos Estaleiros Piriou. Contudo, dois conflitos dificultaram a sua restauração e, em 2013, ainda estava a apodrecer no Porto de Concarneau.
Um dos conflitos foi entre Francine Cousteau, a segunda mulher de Jacques Cousteau, e o filho do primeiro casamento do oceanógrafo, o que provocou atrasos; e o outro conflito foi entre os estaleiros e a Equipa Cousteau (organização para a protecção dos oceanos com sede em França, presidida por Francine Cousteau), e que está relacionado com pagamentos da recuperação do navio. Actualmente, o Calypso já está a ser restaurado.
O filme também retrata a relação, algumas vezes turbulenta, com a sua primeira mulher Simone Melchior, interpretada por Audrey Tautou. Em entrevista à distribuidora de filmes Wild Bunch, a actriz francesa diz que Simone Melchior foi a “verdadeira comandante do Calypso durante quase 40 anos”. Vivia praticamente na embarcação e não era muito filmada. Além disso, sabia das traições de Jacques Cousteau com outras mulheres. “Simone queria uma vida independente. Queria ser diferente dos estereótipos do seu tempo”, realça Audrey Tautou.
Já Francine Cousteau não é mencionada em A Odisseia, em cujo final é referido que a Equipa Cousteau não teve qualquer ligação ao filme – esta organização não considera, aliás, o filme como uma biografia oficial de Jacques Cousteau. Mas Emmanuelle Castro, da distribuidora Wild Bunch, sublinha que esta é a primeira biografia ficcionada de Cousteau no cinema.
A relação com o seu filho Philippe Cousteau também é muito realçada no filme. Pierre Niney é quem veste a pele de Philippe Cousteau e diz na entrevista da Wild Bunch: “Philippe é uma personagem menos conhecida. Co-realizou muitos dos documentários com o seu pai e foi uma personagem muito importante na aventura de Cousteau.” Em A Odisseia é-nos transmitido que Philippe Cousteau – que acabou por morrer em 1979, num acidente de avião em Portugal, no rio Tejo – se preocupava com o ambiente e confrontou o pai com a sua indiferença inicial sobre o assunto.
A viragem de Jacques Cousteau para o ambiente, no filme, dá-se na expedição à Antárctida quando vê restos de baleias caçadas. Margarida Farrajota conta que a preocupação de Jacques Cousteau com o ambiente marinho começou nos anos 70, precisamente quando foi à Antárctida e abandonou a Confederação Mundial das Actividades Subaquáticas, por esta não acabar com a realização de campeonatos de caça submarina.
“A partir de então, as suas expedições e respectiva divulgação passaram a ter uma componente ambientalista e de preservação das espécies”, conta a mergulhadora portuguesa. Jacques Cousteau trouxe para primeiro plano a conservação dos oceanos e, além de conferências pelo mundo, fez campanha para que a exploração mineira continuasse a ser proibida no “Continente Branco”, quando o Tratado da Antárctida foi revisto, no início dos anos 90, e prorrogado até 2041.
São todas estas facetas de Cousteau que vemos no filme. “A Odisseia não é definitivamente uma hagiografia. O filme mostra que a indústria do petróleo financiou os seus trabalhos iniciais, que concordou com compromissos dos canais de televisão norte-americanos para que financiassem os seus filmes, que a sua relação com a sua mulher oscilava e que a sua consciência ecológica despertou mais tarde. Esta é uma surpresa para o público, que tem uma imagem diferente de Cousteau…”, revela numa entrevista, também da distribuidora do filme, Lambert Wilson. “Cousteau era um excelente divulgador dos oceanos, com um ego do tamanho do mundo”, diz, por sua vez, Margarida Farrajota. E destaca ainda a importância da adaptação do escafandro e do regulador ao meio subaquático: “Colocou o equipamento ao alcance dos futuros mergulhadores, para além de uma elite restrita.”
Jacques Cousteau morreu há 20 anos, quando tinha 87 anos. Por altura da sua morte, o biólogo marinho Luiz Saldanha (1937-1997) escrevia: “Cousteau foi o grande divulgador do mar.” Já Mário Ruivo (1927-2017), também na altura coordenador da Comissão Mundial Independente dos Oceanos, afirmava: “Foi um dos primeiros membros da nossa espécie a ver os oceanos não como uma avenida e uma superfície, mas como um espaço tridimensional.”
E hoje será ainda um ícone? O realizador Jérôme Salle conta que, quando falou com o seu próprio filho sobre Jacques Cousteau, ele não sabia nada sobre o explorador, os seus filmes, o Calypso ou a sua “equipa de gorro vermelho”. “Pareceu-me incrível. Porque para as pessoas da minha geração o comandante Cousteau era quase como Jesus, um dos homens mais famosos do mundo.” Para Margarida Farrajota, as novas gerações também não conhecem tão bem Jacques Cousteau, um homem que relembra da seguinte forma: “Quando falava, todos escutavam com magia e encanto. Conseguia galvanizar e transmitir como ninguém esse fascínio pelo mundo subaquático.”
Como Jacques Cousteau disse um dia: “A água sempre me fascinou. A água, e não apenas o mar. Entrar na água, para mim, é como sentir um beijo em todo o corpo.”
Informação retirada daqui
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